A maior companhia de fotos do mundo foi à bancarrota em 2012 vencida pela revolução digital – que ela mesma começou
“Quando uma empresa quebra, nós, os consumidores, raramente nos importamos muito. É somente uma questão de juízos, de reestruturação e, se eles tiverem sorte, vão voltar, mesmo que menores, mas seguindo seu caminho como se nada tivesse acontecido”, escreveu o jornalista britânico David Usborne em uma reportagem do periódico Independent em 2012, quando a Kodak, a gigante estadunidense de revelação de fotos e venda de filmes e câmeras, anunciou sua falência.
Para ele, esse não era o caso da Kodak. “Por essa empresa nós nos importamos – ainda mais se nós nascemos antes de 1986 ou por aí, quando ela estava no auge do seu poder comercial”, completa. Cem anos antes, George Eastman, o fundador da empresa, tinha inventado o rolo de filme, que substituiu as placas fotográficas e permitiu à fotografia se tornar um hobby das massas. A Kodak não fez seu próprio século XX, mas se tornou a curadora de boa parte das memórias.
“Uma das partes mais interessantes da história dessa bancarrota é que todo mundo se entristeceu com ela”, notou Robert Burley, professor de fotografia da Universidade Ryerson, em Toronto, no Canadá, ao Independent. “Há um tipo de conexão emocional com a Kodak por muitas pessoas. Você poderia encontrar esse nome dentro de cada casa americana e, nos últimos cinco anos, isso desapareceu”.
Mas 1986 é indiscutivelmente também o ano em que a Kodak, a empresa que foi por muito tempo o emblema da inovação industrial americana, começou a ser engolida por outros, notavelmente pelo Japão, que aprendeu a inovar também – e mais rapidamente.
A Kodak era uma grande inventora. Em 1900, ela desvelou a câmera Box Brownie. “Você puxa o botão, nós fazemos o resto”, dizia a propaganda. O filme Kodachrome, padrão para cineastas assim como para gerações de fotógrafos por sua incrível definição e longevidade, foi introduzido em 1936 e somente deixou de ser produzido em 2009.
Em 1973, o filme foi eternizado na cultura popular com a canção “Kodachrome”, do cantor estadunidense Paul Simon. “Kodachrome/ They give us those nice bright colors/ They give us the greens of summers /Makes you think all the world’s a sunny day” [“Kodachrome/ Eles nos deram aquelas lindas cores brilhantes/ Eles nos deram os verdes dos verões/ Eles nos fizeram pensar no mundo todo como dia ensolarado”], diz um trecho da letra.
Ainda teve a Instamatic, a câmera com pequenos cartuchos de filme que poupavam os usuários de precisar filmar para filtrar as imagens corretamente. Entre 1963 e 1970, a empresa vendeu 50 milhões de exemplares do produto.
O problema começou 20 anos depois, com o declínio do filme fotográfico. Nos anos 1990, a Kodak investiu bilhões de dólares no desenvolvimento de tecnologia para tirar fotos usando celulares e outros dispositivos digitais, mas isso significou o avanço e a ida das câmeras digitais para o mercado de massa, matando o seu mais importante negócio: os filmes de revelação. Outras companhias ao redor do globo, como a japonesa Canon, se aproveitaram.
Então, quem inventou a câmera digital? Ironicamente, a Kodak – ou preferencialmente, um engenheiro da empresa chamado Steve Sasson, que elaborou um dispositivo de contração que poderia salvar imagens usando circuitos eletrônicos. As fotos eram transferidas por uma fita cassete e eram visualizadas depois ao atar a câmera em uma tela de televisão, num processo que levava 23 segundos.
Foi uma descoberta incrível e aconteceu em 1975, muito antes da era digital. Sasson e seus colegas estavam com rostos pálidos quando revelaram o dispositivo aos seus chefes da Kodak. Mesmo assim, ele mesmo não viu totalmente o potencial do que tinha criado. “É engraçado agora olhar de volta para o projeto e ver que nós não estávamos realmente pensando naquilo como a primeira câmera digital do mundo”, escreveu ele mais tarde no blog da empresa.
“Nós estávamos vendo-o como uma possibilidade distante. Talvez o relatório técnico escrito na época mostre isso melhor: ‘A câmera descrita nesse documento representa a primeira tentativa de revelar um sistema fotográfico que deve, com melhorias na tecnologia, substancialmente impactar o jeito que as imagens serão capturadas no futuro”. Na verdade, nós não tínhamos ideia”, diz Sasson.
Para os chefes da Kodak, ir em direção ao digital significava matar o filme, esmagando os ovos de ouro da empresa para abrir caminho ao novo. Sasson vê hoje que ele não tinha certeza exata de ter conquistado justamente esse avanço quando revelou seu “brinquedo”: “No que foi uma das mais insensíveis demonstrações já vistas, nós chamamos o dispositivo de ‘filme menos fotográfico’”, conta.
Mesmo antes do filme começar a cair, outros produtores, notavelmente a Fuji, já estavam mordendo o domínio da empresa: em 1984, foi ela quem forneceu os filmes oficiais das Olimpíadas de Los Angeles, nos EUA, depois que a Kodak declinou da oportunidade. Nos anos recentes a empresa tem sentido o peso por suas responsabilidades de pagamentos de pensão, nascidas de uma cultura paternalista introduzida pelo próprio Eastman.
Em 1976, a Kodak venceu 90% dos filmes fotográficos nos Estados Unidos e 85% das câmeras. Dez anos depois, ela ainda empregava 145 mil pessoas ao redor do mundo comparada à folha de pagamento que tinha em 2012, de 18 mil pessoas no globo. A história um dia talvez conclua que muito da queda lenta da empresa pode ser contada pela falha dos seus líderes em reconhecer o imenso potencial da invenção de Sasson.
Don Strickland, o último vice-presidente da Kodak, que deixou a empresa em 1993 por mesmo assim não ter conseguido persuadi-la a produzir e vender a câmera digital, coloca isso da seguinte forma: “Nós desenvolvemos a primeira câmera digital de consumo mundial, mas não pudemos lançá-la ou vendê-la por causa do medo dos efeitos do mercado de filme”.
A decisão de anunciar proteção à bancarrota nos Estados Unidos colocou o futuro financeiro de 15 mil empregados britânicos em risco. A empresa tinha uma significante fábrica instalada em Harrow, ao norte de Londres, que no seu pico tinha 6 mil funcionários e ainda mantinha cerca de mil em 2012. A Kodak concordou em investir US$ 800 milhões (R$ 2,5 bi) nos fundos de pensão do Reino Unido na década seguinte para preencher um déficit massivo
No Brasil, a fábrica de papel fotográfico que era mantida em São José dos Campos, em São Paulo, já tinha demitido boa parte dos 650 funcionários em 2005. Em 2008, ela anunciou que desativaria o local, mas acabou mantendo-o para unificar todas as equipes da empresa no país em um único espaço. Estimava-se que os gastos para fechá-lo giravam em torno de US$ 48 milhões (R$ 155 milhões).
O mercado brasileiro viu recentemente uma nova empresa surgir na tentativa de retomar a revelação de imagens, antes dominada pela Kodak: a Phooto, que une o hábito da fotografia registrada no papel do passado – criado pela empresa estadunidense – com as facilidades do manuseio de celulares e câmeras digitais.